segunda-feira, 2 de maio de 2016

Coração em alto mar





Filhos crescem. Rápido demais. Eu me lembro do dia em que nosso primeiro filho nasceu. Nossa maior emoção. Lembro que peguei aquela pequena obra prima nas mãos e pensei, num misto de maravilhamento e pânico: como vou transformá-lo num homem?
Bem, mas como tudo o que Deus cria é perfeito, a vida é construída dia após dia, um tijolinho de cada vez. Para um bebê se transformar num homem são vinte intensos anos, feitos de inúmeros dias e horas, de muito trabalho e dedicação. Assim como aprendemos a ser pais aos poucos, aplicando intuição e informação aos desafios diários que se apresentam, assim também nossos filhos crescem e se desenvolvem dia após dia, sendo transformados, ao longo de finas camadas de tempo que se sobrepõem.
E, como um rio que já tem seu percurso desenhado, nosso papel é apontar o caminho das águas, que correm pela primeira vez, da nascente até o mar. Neste trabalhoso processo, que quiçá nunca termine, temos o privilégio de viver uma das mais extraordinárias experiências que a vida pode nos dar: a de acompanhar um ser humano se desenvolvendo, de embrião a bebê, de criança a jovem, até se transformar num homem! Isto é realmente maravilhoso!  Viver de verdade a maternidade ou paternidade tira definitivamente o epicentro de nossa vida do nosso umbigo, e o projeta para o outro, num ato de total doação; nos faz reavaliar prioridades e valores, e nos dá a chance de nos tornarmos pessoas melhores.
Pra quem é mãe, o negócio é um pouco mais complexo. Filho é pedaço da gente e, mesmo que voe, continua sendo uma parte sua que se desgarrou. Isso é uma algo realmente estranho, e quanto mais longe o filho, mais evidente esta realidade é. Um pedaço do meu corpo e alma voando por aí! Como é que pode? Quando eles começam a andar sozinhos, pegar ônibus, sair à noite, etc, você tem aquela preocupação com a segurança pública, a integridade “física e moral” deles. Mas nada que uma comunicação virtual lacônica e paulatina não resolva."Cheguei bem.Te amo."
Quando eles fazem a mochila e vão para o exterior, a coisa toma outra dimensão. Monitorar voos, a situação política do país de destino, segurança, alimentação, moradia, custos, possível choque cultural lá e aqui. Mas nada que um conversa online não faça acalmar os ânimos, mesmo com setenta horas de fuso horário.
Mas, meus amigos, quando seu filho diz que vai ficar incomunicável por um mês, porquê o navio aonde mora zarpou da Oceania para um remoto país no Pacífico, do qual nove entre cada dez pessoas cultas nunca ouviu falar; um lugar inóspito, perdido, digno de aventuras de Robinson Crusoé ou de histórias da época do descobrimento, aí você realmente muda de perspectiva, solta a corda e pode, literalmente, dizer: “Meu filho, desta vez você foi longe demais!”
Há 30 anos, ir para o Japão era muito raro. Morar fora, incomum. Agora, o mundo é o quintal desta geração, e sua transformação de meninos em homens, o “acabamento final”, de seu coração, caráter e comportamento, não é feito dentro de casa, mas lá fora. Os pais permanecem no coração dos filhos e, da mesma forma, os filhos no coração dos pais. Aonde estiverem, você também estará lá.
Prefiro não procurar o navio no mar, com os recursos que a tecnologia me proporciona. Eu escolho confiar. Eu escolho entregar. Os meus filhos não são meus. Eles não começaram em mim, mas muito antes de mim, no coração do Pai. Existe um projeto maravilhoso desenhado no céu para cada um de nós. Podemos conhecê-lo e vivê-lo, ou não. Como pais, devemos procurar descobrir os planos e promessas de Deus para nossos filhos e os ajudar a andar nos caminhos altos preparados para eles.
            Filho, aquele que começou a boa obra em sua vida é fiel e justo para completá-la. Ele tem aqueles que o amam na palma de suas mãos. Ele acalma as tempestades e abre o tempo. Vai à frente e abre o caminho. Nos livra de todo o mal. É vivo, atemporal. Universal, onipresente, onisciente, real. Nas mãos daquele que me confiou você para cuidar te entrego, confiando que ele tudo fará e, aonde não alcanço, estou certa de que ele estará. Dele é o governo de todas as coisas.
Navegando no meio do Pacífico, entre Oriente e Ocidente, achado, no centro da vontade de Deus, no mais seguro lugar. É onde você está. Filhos são como flechas. Lançadas, no espaço infinito, valentes, diligentes, certos do alvo que, revelado em seu coração, alcançarão.
Meu coração, suspenso, grato e confiante, está batendo em alto mar. 



terça-feira, 21 de outubro de 2014

Breve reflexão sobre o momento histórico que vivemos.




Chama a atenção, todo o tempo, o foco errado dos candidatos em ataques pessoais e não na apresentação e defesa de propostas acima da política e de partidos, visando beneficiar o povo e a nação, que, diga-se de passagem, são um só e estão acima da política. O dever das autoridades é zelar pela nação e por seu povo, ou defender suas próprias idéias, pautados na vaidade e sede de poder?
A raiz de nosso sistema político remonta séculos na história, mas o nome já diz tudo: Partido - dividido, cindido. São facções ideológicas, que levam a um eterno movimento pendular do poder, muitas vezes sem foco na nação, mas errando o alvo e defendendo verdades próprias, poderes pessoais e ideologias humanas, sem respeito ou ética para com os outros atores em cena.
Como há muito está escrito: "reino dividido não prospera", e parece claro que há mais prejuízo que lucro para todos neste sistema político dividido, rebaixado do que deveria ser o exercício da democracia. Agora pensando, é visível que, nestas eleições, o espírito de divisão que começou nos debates contaminou o país, criando inimizades e disputas até entre amigos, a ponto de alguém parafrasear a conhecida canção, dizendo: "É preciso amar as pessoas como se não houvesse eleição..."
O voto é livre e secreto, vamos cada um exercer seu direito e manter a civilidade, o respeito e os relacionamentos acima das polêmicas e diferenças.
No palco, o debate político deveria ser objetivo, claro, respeitoso, com foco nas propostas, sem ataques pessoais; unidade em prol da nação. Como se configurou, mais parece encenação teatral ou briga de galo. "And the Oscar goes to..." 
Mas vale dizer que as questões em jogo são profundas e sérias e exigem conhecimento, preparo, caráter, respeito, visão de quem se candidata a liderar uma nação como o Brasil.
E será que nossa nação está ocupada em formar bons líderes, com caráter reto?
A construção do processo democrático é longa e difícil; acontece no tempo da história, no decorrer de gerações. Estamos há 26 anos da retomada da democracia, após sofrermos 25 anos de ditadura militar. São estes os recentes capítulos de nossa história.
Temos que votar hoje tendo uma visão mais ampla e objetiva da história, procurando escolher da melhor maneira que pedrinha vamos deixar, no breve tempo de nossa existência, na longa construção de nossa sociedade.
A acalorada discussão entre A e B, cada um se fazendo salvador da pátria e tentando fazer o outro vilão, é uma armadilha fácil para todos os eleitores, um empobrecimento do discurso político e das relações humanas entre autoridades que depõe contra eles mesmos, contra os brasileiros, e contra a nação. "Modus politicus" lamentável, que recai no argumento infantil e primário de culpar o outro, para tirar o foco de suas próprias responsabilidades e defeitos diante de quem assiste.
Precisamos ver o momento com um certo recuo, com mais verdade e honestidade, e menos emoção: na construção do processo democrático, os cidadãos precisam conhecer seus direitos e deveres, participar de forma ativa da vida política, social e econômica de sua nação. Precisam sair da passividade e da cultura centenária brasileira de responsabilizar o governo por todos os problemas e insucessos.
A corrupção não é política nem partidária, é humana, e está arraigada à nossa cultura desde a colonização. Pode ser vista em todas as instâncias da sociedade, não só no poder público, mas na iniciativa privada, na vida pessoal e coletiva. O ser humano é corruptível, o poder, grande ou pequeno, seduz e corrompe. Tem que haver verdade, clareza, justiça. E precisamos entender que todos nós podemos nos corromper, se é que já não estamos corrompidos. Sorry. Aquele que crê estar de pé cuide para que não caia. É também primário não reconhecer nossa própria natureza humana e sempre jogar a culpa nos líderes.
No Brasil, "tirar proveito", ser passivo como cidadão, não respeitar a lei (pra que serve limite de velocidade, por exemplo), furar fila ou pagar para alguém passar na frente seu processo, desrespeitar pedestre, idoso, ou qualquer pessoa, comprar carteira de estudante, de motorista, não se importar com o que padece na rua, na favela, achar que o menino que rouba é um vagabundo e não o fruto triste de uma sociedade injusta; são alguns dos incontáveis exemplos das nossas "pequenas" corrupções e negligências, tão arraigadas e aceitas que nem questionamos.
Será que não está na hora de limparmos de vez nossa conduta pessoal? De começarmos a mudança olhando para o nosso umbigo, e então para o próximo, sua família, seu bairro, sua cidade, e estendendo esta onda cidadã até os confins da terra? Vamos parar de culpar o governo por tudo, mudarmos e agir?
O que vc tem feito como cidadão? Sua idéia de sucesso pessoal inclui a justiça social, a igualdade, o desenvolvimento de sua nação, ou vc quer ser próspero para satisfazer seus desejos pessoais, e continuar culpando as autoridades, que vc nem respeita, por tudo?
Desculpem a sinceridade, mas acho que nosso problema é muito maior, é histórico, cultural, e precisamos começar a olhar para nós mesmos, mudar nosso posicionamento e conduta, e participar como cidadãos para que o país se desenvolva de forma justa e igualitária para todos.
A escolha nesta eleição não está fácil, sofremos por décadas de falta de exercício político e não temos líderes ideais. Mas quem sabe se mudarmos nossa história, começando por nossa casa, quintal, cidade e nação, podemos ter esperança de que lideres justos e com caráter reto venham a nos governar?
Vamos escolher bem nossos líderes e abençoá-los para que nós tenhamos uma vida justa e sossegada.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Deus é arqueólogo


E a terra onde ele escava é o coração.
            Primeiro, bate à porta. Educadamente. Ele está à porta. O coração é a porta. Dele procedem as fontes da vida. É terreno abissal.
 Se você abrir, Jesus entrará e ceiará com você. Mas mesmo sendo convidado, depois do jantar, o Senhor tem muito a fazer em sua casa. Ele deixou a posição de maior glória e majestade no céu e tomou a forma de servo. Porque segundo a lei de Deus, maior é o que mais ... serve. Tudo ao contrário do mundo. O reino de Deus é, sempre, oposto ao mundo.
            A louça suja é só o início do trabalho, pois Deus quer fazer uma mudança profunda em sua casa. A louça é como a camada mais superficial do terreno do escavador. Aqui, há documentos e objetos guardados no fundo dos armários e gavetas. A terra guarda o tempo em camadas. Os vestígios da história, em forma de objetos, são mais antigos quanto mais profunda for sua localização na terra. Assim também nossa história e nosso caráter estão guardados em camadas em nosso coração.
            O trabalho do arqueólogo consiste em encontrar, limpar, reconhecer, organizar e separar, minuciosamente, inúmeros objetos e seus fragmentos, peças de um quebra-cabeça que fala dos usos e costumes de um tempo, povo ou lugar. É preciso separar o precioso do vil. Guardar o que tem valor, descartar o que é inútil.
            Antes de começar seu trabalho, o arqueólogo demarca precisamente o sítio onde vai trabalhar. A escavação será profunda, mas delicada e minuciosa, com a precisão cirúrgica de um bisturi. Quando a escavação é em nosso coração, o arqueólogo é também o médico dos médicos. É preciso entregar seu coração. Deixe-o trabalhar, ele sabe o que faz e sua obra será perfeita.
O trabalho começa na superfície. Como um pai de família que tira de seu baú coisas novas e velhas, Deus trabalha, incessantemente, nos corações onde foi convidado a entrar.
Se você abriu a porta, em primeiro lugar ele perdoa seus pecados. Ele vai te tirar do mundo, e em seguida, tirar o mundo de dentro de você.  “Porque não devemos amar o mundo e as coisas que nele há.” Tudo o que você “adorava”, “não podia viver sem”, se não agrada a Deus pouco a pouco, ele vai tirar. Mas o que ele tem para colocar no lugar incomparavelmente melhor. O Senhor tem riquezas eternas e segredos para compartilhar conosco. Mas como receber um presente deste quilate, os segredos do coração de Deus, se o mundo ocupou totalmente seu coração? É preciso abrir mão, entregar, deixar Jesus esvaziar sua casa coração para então, fazer novas todas as coisas. Somos como vasos na mão do oleiro. O Senhor não remenda vasos, ele os quebra, e faz de nós vasos totalmente novos.
Quanto maior a entrega, mais rápido e eficaz o trabalho será.
Quando você finalmente compreender que os sonhos e planos de Deus pra você são muito melhores que os seus próprios planos pra você, vai querer entregar os seus e trocá-los pelos do Pai. Depois de limpar seu coração ele começará a gerar, em você, os sonhos dele. Prepare-se, você vai ficar maravilhado, sem palavras, quando começar a andar nos caminhos altos de Deus.
Mas, atenção: ser terreno de escavação não é nada fácil. Como um paciente que vai ser operado, é melhor não se degladiar no bloco cirúrgico. Você está ali por sua necessidade, e para ser totalmente transformado. O melhor é se entregar, e confiar.
No coração, quando a escavação chega em camadas mais profundas, é a vez de ter o caráter lapidado.  Jesus vai começar a mexer em nossa personalidade. Sabe por quê? Porque ele quer que você se torne cada vez mais parecido com ele. O objetivo de Deus conosco é que tenhamos o caráter, o coração, e a mente de Jesus. Deixe Deus trabalhar. Ele tem um plano pronto, sabe exatamente aonde quer chegar.
Há uma eternidade na presença do pai e do filho, para aqueles que crêem, e perseveraram com ele no caminho.
Há um lugar preparado especialmente pra você à mesa das bodas do Cordeiro. Nós somos a noiva de Cristo. Se você não for, seu lugar ficará vazio pra sempre, e você, fora da presença de Deus.
E não apenas isto, mas o pai quer se relacionar, ter intimidade com aqueles que são seus filhos. Como é possível ser íntimo de quem você não conhece?
Neste exato momento, ele está à porta e bate. Você vai deixá-lo entrar?

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

ESPANHA



Amanhece sobre os Pirineus.

Um leito de nuvens
se acomoda entre as montanhas
como mar.
A terra é seca.
Energia é tirada do vento
e óleo das azeitonas prensadas.
O povo também é árido.
Sombras longas se projetam
pelos campos
anunciando nos povoados
o dia que se levanta.
Um rio ou outro
serpenteia sobre a terra.
Um patchwork verde e marrom
ton sur ton
mostra o sustento vindo da terra.
Tudo peleja.
Tudo subsiste.
Escrevendo e prosseguindo em sua história,
a Espanha vive.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Memórias da minha cidade



Eu me lembro bem da minha cidade nos anos 70. Ela era, pra mim, enorme, mas bem conhecida, pois sempre moramos na região central e transitávamos muito, de carro, ônibus, a pé.
Nossa escola, o Einstein, era, literalmente, colada na nossa casa e, digamos, uma extensão dela. Como meu pai, profissional da educação, contribuía voluntariamente nas questões da escola, e éramos envolvidos com a comunidade (inclusive nos fins de semana); não raro recebíamos a visita de professores, que se tornavam amigos, e de inúmeros colegas: verdadeiras hordas de crianças em nosso apartamento, desde os melhores amigos, até crianças estilo “esqueceram de mim”: os pais não buscavam, a escola tinha que fechar, e pediam pra minha mãe se o menino podia ir lá pra casa esperar  “o resgate”.
Morávamos no terceiro, e último, andar de um pequeno prédio. Pra ir pra escola, era só descer correndo as escadas, muitas vezes escorregando pelo corrimão de mármore, quando o sino da D. Isabel, guardiã da porta da escola, já tinha tocado, e tínhamos, eu e meu irmão, literalmente que voar, pra pegar o portão aberto.
A União Israelita, ou “União”, para os íntimos, era o clube que frequentávamos nos fins de semana. Clube e escola funcionavam no mesmo lugar. A enorme piscina azul podia ser vista da janela do meu quarto. Ali passamos inúmeros dias, soltos, nadando e brincando por horas.
No “salãozão”, como chamávamos o grande auditório com palco, coxia e tudo, é que vi, assombrada, pela primeira vez, senhores já bem idosos, marcados na parte inferior do antebraço com um enorme número, terrível memória dos campos de concentração. Estes haviam escapado do terror, e lá estavam, tranquilos, jogando cartas enquanto o tempo passava devagar.
Muitas histórias aprendi nos dez anos de Einstein: ali fui alfabetizada, aprendi sobre a cultura e história judaicas e, sobretudo, a amar o povo judeu como uma extensão de mim mesma. A deliciosa comida, simbólica e milenar; as épicas histórias da Bíblia, as festas típicas, o hebraico, os feriados, inúmeros, judaicos e cristãos, a bandeira de Israel, e, finalmente, um jeito criativo, questionador, e quase anárquico de ensinar, em plena ditadura; tudo isto ficou gravado em mim em profundas camadas do meu coração para sempre.
Bem, mas saindo da escola para a cidade. Nos fins de semana, com nosso pai de folga, e um permanente espírito explorador, ampliávamos nosso círculo de abrangência.
O centro de Belo Horizonte era uma delícia. Coisa boa era assistir às matinês no Cine Jacques, Acaiaca ou Pathé.  Ao lado do Cine Jacques, o lanche no Ted’s fechava o passeio com chave de ouro. Na praça da Liberdade já existia o Xodó, com a melhor batata chips do mundo, num formato quadriculado que nunca mais vi. Meu pai gostava tanto das matinês que era capaz de ir sozinho até para assistir Tom e Jerry ou Carlitos. Ele dava gargalhadas tão altas que eu e meu irmão abaixávamos na cadeira morrendo de vergonha.
Vez por outra passeávamos no Mercado Central, e minha diversão predileta era observar o colorido movimento das lojas e pessoas, através do recorte das grades instaladas no chão do piso do estacionamento.   
A Praça da Liberdade era território de pais e crianças. Ali aprendi a andar de bicicleta e brincávamos de sermos arrastados nas folhas das palmeiras que caiam na alameda principal.
Quando as chuvas começavam, a Avenida Afonso Pena ficava linda de noite, refletindo no asfalto molhado as luzes coloridas de Natal. Cada ano era uma decoração. Hoje pensando, acho que a decoração era meio “brega”, mas eu achava linda. Subir e descer a avenida de carro era nosso “caminho da roça.”
Outra coisa que eu fazia muito era ver a cidade deitada no carro. Os trajetos mais conhecidos, como da nossa casa à casa da vovó, na ida e na volta, eu podia adivinhar, apenas olhando o alto dos prédios e o céu. Eram trajetos aéreos da cidade, que até hoje guardo na memória.
No início do ano letivo, todo ano, minha mãe me levava pra fazer um sapato ortopédico. O sapateiro colocava meus pés em cima de um papel de mercearia, e fazia seu contorno com uma caneta, o que fazia muita cosquinha. Este procedimento durou anos. Meu pé continuou chato, mas eu me diverti muito com aquilo e fiquei com uma memória bucólica do assunto.
Outra sapataria que frequentávamos era “A Balalaika”, na Avenida Afonso Pena, no centro. Acho que ninguém, exceto eu e minha mãe, deve se lembrar disso. O atendente era o filho do dono, que nos tratava sempre com o máximo de decoro e educação.
Roupa, fazíamos em costureiras. Como tenho saudade disso. Elas passavam o dia em nossa casa, fazendo várias peças para a família. Quando fui crescendo, passei a escolher os tecidos e desenhar os modelos , em cada detalhe, o que era um exercício de arte e uma grande diversão. Uma de nossas costureiras mais frequentes, Balbina, costumava fazer roupas maiores que a medida, e quando a gente reclamava, ela simplesmente dizia: “É só você por um brochinho aí, que fica ótimo.” Que cara de madeira!
Belo Horizonte cresceu. Hoje, vista do alto, nem a reconheço. Moro fora da cidade. Circulo numa pequena parte da cidade, não sei muito do resto. Vejo pessoas com caras fechadas e, em alguns pontos, várias  “tribos urbanas”. O espaço público não pertence mais a seus habitantes. Todo mundo anda de carro, vidro fechado, a violência aumentando. É difícil hoje soltar uma filha adolescente para andar sozinha, como eu fiz, toda vida.
A memória que meus filhos terão da cidade será totalmente diferente da minha.
Diferente da do meu pai; que se mudou pra cá nos anos 1950, vindo do interior para estudar, e “vencer na vida”.
Mais diferente ainda da memória do meu avô Pimentel, que veio para a capital em 1933, começou a dirigir aos 13 anos, quando haviam, pasmem, apenas 7 carros em toda a cidade, apenas um guarda de trânsito e um posto de gasolina, este, pensavam, fadado a falir por falta de clientes.
Ou minha avó Dina, que se formou no mesmo ano no Conservatório, em piano e canto, e fundou a primeira orquestra de mulheres de Belo Horizonte.
Sim, a cidade mudou. Temos mais recursos, mas muito mais limitações. O simples deslocamento de um lugar a outro se tornou um caos. É o que chamam de desenvolvimento.
Tenho vergonha de dizer a meus filhos que eles não podem andar a pé pela cidade. O espaço público não é seguro. Quem sabe um dia. Quem sabe noutro lugar. Nossa relação com a cidade não é mais de intimidade. Pulamos de um a outro lugar seguro. Alguns, verdadeiros “condomínios de seguranças máxima”. Eu prefiro andar a pé. Observar o tempo, as pessoas. Respirar o lugar. Ainda não perdi a esperança.