sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Memórias da minha cidade



Eu me lembro bem da minha cidade nos anos 70. Ela era, pra mim, enorme, mas bem conhecida, pois sempre moramos na região central e transitávamos muito, de carro, ônibus, a pé.
Nossa escola, o Einstein, era, literalmente, colada na nossa casa e, digamos, uma extensão dela. Como meu pai, profissional da educação, contribuía voluntariamente nas questões da escola, e éramos envolvidos com a comunidade (inclusive nos fins de semana); não raro recebíamos a visita de professores, que se tornavam amigos, e de inúmeros colegas: verdadeiras hordas de crianças em nosso apartamento, desde os melhores amigos, até crianças estilo “esqueceram de mim”: os pais não buscavam, a escola tinha que fechar, e pediam pra minha mãe se o menino podia ir lá pra casa esperar  “o resgate”.
Morávamos no terceiro, e último, andar de um pequeno prédio. Pra ir pra escola, era só descer correndo as escadas, muitas vezes escorregando pelo corrimão de mármore, quando o sino da D. Isabel, guardiã da porta da escola, já tinha tocado, e tínhamos, eu e meu irmão, literalmente que voar, pra pegar o portão aberto.
A União Israelita, ou “União”, para os íntimos, era o clube que frequentávamos nos fins de semana. Clube e escola funcionavam no mesmo lugar. A enorme piscina azul podia ser vista da janela do meu quarto. Ali passamos inúmeros dias, soltos, nadando e brincando por horas.
No “salãozão”, como chamávamos o grande auditório com palco, coxia e tudo, é que vi, assombrada, pela primeira vez, senhores já bem idosos, marcados na parte inferior do antebraço com um enorme número, terrível memória dos campos de concentração. Estes haviam escapado do terror, e lá estavam, tranquilos, jogando cartas enquanto o tempo passava devagar.
Muitas histórias aprendi nos dez anos de Einstein: ali fui alfabetizada, aprendi sobre a cultura e história judaicas e, sobretudo, a amar o povo judeu como uma extensão de mim mesma. A deliciosa comida, simbólica e milenar; as épicas histórias da Bíblia, as festas típicas, o hebraico, os feriados, inúmeros, judaicos e cristãos, a bandeira de Israel, e, finalmente, um jeito criativo, questionador, e quase anárquico de ensinar, em plena ditadura; tudo isto ficou gravado em mim em profundas camadas do meu coração para sempre.
Bem, mas saindo da escola para a cidade. Nos fins de semana, com nosso pai de folga, e um permanente espírito explorador, ampliávamos nosso círculo de abrangência.
O centro de Belo Horizonte era uma delícia. Coisa boa era assistir às matinês no Cine Jacques, Acaiaca ou Pathé.  Ao lado do Cine Jacques, o lanche no Ted’s fechava o passeio com chave de ouro. Na praça da Liberdade já existia o Xodó, com a melhor batata chips do mundo, num formato quadriculado que nunca mais vi. Meu pai gostava tanto das matinês que era capaz de ir sozinho até para assistir Tom e Jerry ou Carlitos. Ele dava gargalhadas tão altas que eu e meu irmão abaixávamos na cadeira morrendo de vergonha.
Vez por outra passeávamos no Mercado Central, e minha diversão predileta era observar o colorido movimento das lojas e pessoas, através do recorte das grades instaladas no chão do piso do estacionamento.   
A Praça da Liberdade era território de pais e crianças. Ali aprendi a andar de bicicleta e brincávamos de sermos arrastados nas folhas das palmeiras que caiam na alameda principal.
Quando as chuvas começavam, a Avenida Afonso Pena ficava linda de noite, refletindo no asfalto molhado as luzes coloridas de Natal. Cada ano era uma decoração. Hoje pensando, acho que a decoração era meio “brega”, mas eu achava linda. Subir e descer a avenida de carro era nosso “caminho da roça.”
Outra coisa que eu fazia muito era ver a cidade deitada no carro. Os trajetos mais conhecidos, como da nossa casa à casa da vovó, na ida e na volta, eu podia adivinhar, apenas olhando o alto dos prédios e o céu. Eram trajetos aéreos da cidade, que até hoje guardo na memória.
No início do ano letivo, todo ano, minha mãe me levava pra fazer um sapato ortopédico. O sapateiro colocava meus pés em cima de um papel de mercearia, e fazia seu contorno com uma caneta, o que fazia muita cosquinha. Este procedimento durou anos. Meu pé continuou chato, mas eu me diverti muito com aquilo e fiquei com uma memória bucólica do assunto.
Outra sapataria que frequentávamos era “A Balalaika”, na Avenida Afonso Pena, no centro. Acho que ninguém, exceto eu e minha mãe, deve se lembrar disso. O atendente era o filho do dono, que nos tratava sempre com o máximo de decoro e educação.
Roupa, fazíamos em costureiras. Como tenho saudade disso. Elas passavam o dia em nossa casa, fazendo várias peças para a família. Quando fui crescendo, passei a escolher os tecidos e desenhar os modelos , em cada detalhe, o que era um exercício de arte e uma grande diversão. Uma de nossas costureiras mais frequentes, Balbina, costumava fazer roupas maiores que a medida, e quando a gente reclamava, ela simplesmente dizia: “É só você por um brochinho aí, que fica ótimo.” Que cara de madeira!
Belo Horizonte cresceu. Hoje, vista do alto, nem a reconheço. Moro fora da cidade. Circulo numa pequena parte da cidade, não sei muito do resto. Vejo pessoas com caras fechadas e, em alguns pontos, várias  “tribos urbanas”. O espaço público não pertence mais a seus habitantes. Todo mundo anda de carro, vidro fechado, a violência aumentando. É difícil hoje soltar uma filha adolescente para andar sozinha, como eu fiz, toda vida.
A memória que meus filhos terão da cidade será totalmente diferente da minha.
Diferente da do meu pai; que se mudou pra cá nos anos 1950, vindo do interior para estudar, e “vencer na vida”.
Mais diferente ainda da memória do meu avô Pimentel, que veio para a capital em 1933, começou a dirigir aos 13 anos, quando haviam, pasmem, apenas 7 carros em toda a cidade, apenas um guarda de trânsito e um posto de gasolina, este, pensavam, fadado a falir por falta de clientes.
Ou minha avó Dina, que se formou no mesmo ano no Conservatório, em piano e canto, e fundou a primeira orquestra de mulheres de Belo Horizonte.
Sim, a cidade mudou. Temos mais recursos, mas muito mais limitações. O simples deslocamento de um lugar a outro se tornou um caos. É o que chamam de desenvolvimento.
Tenho vergonha de dizer a meus filhos que eles não podem andar a pé pela cidade. O espaço público não é seguro. Quem sabe um dia. Quem sabe noutro lugar. Nossa relação com a cidade não é mais de intimidade. Pulamos de um a outro lugar seguro. Alguns, verdadeiros “condomínios de seguranças máxima”. Eu prefiro andar a pé. Observar o tempo, as pessoas. Respirar o lugar. Ainda não perdi a esperança.