quarta-feira, 17 de novembro de 2010



Belo Horizonte, 21 de março de 2008

                                               Querida vovó Dina,

            Já é madrugada e eu te escrevo esta carta. Você está perto de mim, mas talvez não possa lê-la ou escutá-la integralmente. Mesmo assim, eu quero te contar uma história:
Era uma vez uma mulher corajosa. Antes, ela foi menina.
Nasceu na fazenda do Jacuí e, mais tarde, mudou-se para Sete Lagoas, com a mãe e as irmãs mais velhas, Maria, Sinhá e Isaura.
As lições de piano e os pequenos concertos no cinema mudo de Sete Lagoas muito lhe ensinaram; ela passou nas provas do Conservatório e veio estudar música em Belo Horizonte. No início dos anos 30, formou a primeira orquestra de moças da cidade.
Vó Damatta, sua mãe, não te perdia de vista, te acompanhando nas aulas em Belo Horizonte, o que não impediu você de se apaixonar por aquele rapaz alto e galante, nosso vovô Miguel. Como você mesmo dizia: “Naquela época, ele era muito bonito e alinhado, não era este homem feio de hoje, não.”
Bem, a vida de casada prosseguiu, com muitas lutas e conquistas. Do seu ventre logo surgiram frutos e, deles, uma família.
Sempre se desdobrando, cuidando da casa e dando aulas de música, você passou pela dor irreparável de perder três dos cinco filhos. Quanto mais o tempo passou, mais acesa esta lembrança se tornou. Você mesma dizia: “A gente passa por essa dor, mas nunca mais é a mesma”. Só seu coração de mãe (e o de Deus) é que o sabem.
No entanto, alguns ramos deram prósperos frutos, e sua descendência se multiplicou. Se se conhece a árvore pelos frutos, aí estão: Vania e Fernando, seus filhos, exemplo de lealdade e caráter. Sua nora, genro, seus netos e bisnetos, todos forjados ou influenciados por sua doçura, valores humanos e determinação; por seu senso de justiça e amor real ao próximo; por sua permanente disposição em se doar e cultivar sólidos relacionamentos, alicerçados na rocha que é o Senhor Jesus.
Vó, você é um exemplo de mulher virtuosa (como a de Provérbios 31), dedicada, amorosa e fiel.
Você me ensinou, ainda criança, os primeiros salmos e, de joelhos, orava todas as noites comigo e com o Paulo, nas longas férias de verão na praia. É mistério a dimensão e o resultado das suas orações: poder em ação. Aqui estamos nós, mais de trinta anos depois, inteiramente tomados pelo amor ágape de Deus na pessoa de Cristo, a quem aprendo a amar e conhecer mais e mais, a cada dia.
Das lembranças, não sei por onde começar: se pelo “enorme” apartamento da rua Espírito Santo, com som de centro de cidade, sombras e luzes em movimento, entrando pela fresta da veneziana, fazendo um maravilhoso cinema no teto, pra gente dormir.
Se pelo cheiro de rosca-bolo assando na cozinha da casa da praia. Ou pelos passeios, por ruas de terra, com toda a família, sob um céu divinamente estrelado. Se pelos banhos de caneco e noites à luz de liquinho. Ou pelas tardes, deitados com você e o vovô, contando histórias e rindo, escondendo da vizinha, que chamava sem parar.
Na sua casa, você tocando “Fascinação” e outras peças, lindamente, ao piano. Se pelas músicas que você nos ensinava; pelos presentes que você e o vovô traziam de longe; pela espera amorosa de nossos pais, preparando delícias para sua chegada, quando eles viajavam e vocês ficavam cuidando de nós.
Se pelas aventuras inesquecíveis das viagens que mais tarde fizemos juntas. Sozinhas na Espanha, um incêndio na Áustria, quase presas na Suíça, passeando por Istambul. Em Israel, nossa maior emoção, confirmação, e um divisor de águas. Já faz tanto tempo... e tudo é tão vivo e real!
Nos aniversários, você sempre dizia que não queria ganhar nada: mas nada como conhecer o coração de uma avó: você sempre amou lenços, perfumes e coisas delicadas, além de flores e passarinhos. Aliás, com você aprendi a amar tudo o que é delicado. Sua cristaleira, um capítulo à parte, me fascinava desde muito pequena: caixinhas de música, e quantas porcelanas finas.
Mas, mesmo conhecendo o mundo todo e sendo uma mulher vivida, você sempre guardou a simplicidade. Seu coração nunca esteve plantado nos valores do mundo e, sim, nas coisas de Deus.
Há pouco tempo você me disse, com firmeza e serenidade, que não tinha medo da morte. Te perguntei como você imaginava a vida eterna e você prontamente respondeu: “Acho que estaremos como aqui, lado a lado, mas sem diferenças. E todos estarão no mesmo espírito, adorando a Deus.”
Para quem tem a salvação, a separação é temporária.
Finalmente, fico imaginando como você vai entrar na presença do Pai: imagino um grande baile, e você, linda e jovem, vestida de gala, sendo tomada pela mão pelo Senhor.
Vó, lá não há peso, nem dor, nem preocupação, e sim, a Paz. Eu creio, e posso imaginar. Mas pra nós tudo é mistério. Não mais pra você.

Um beijo da sua neta,

Ana

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

PALAVRA


Não escrevo para agradar,
nem para defender princípios.


Palavras jorram,
pedindo rio,
virando mar.


Vem do alto, e de dentro, brotam.
Como água surgindo de abissal lençol,
ou inseto subterrâneo,
que luta para vir à luz e se tornar em canto e vôo.


Não crio água,
quiçá seja terra;
que filtra, dá passagem, sabor, som e luz.


Não crio palavras,
Sou coração, mente e boca,
de onde saem rios em direção aos quatro pontos cardeais.


Depois de mim
a palavra - água e semente,
precisa cair em terra boa,
para então brotar, criar vida e dar bons frutos
eternamente.