segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A descoberta do caderno


Ana Pimentel Romano
            Hoje, pela primeira vez, li o caderno de receitas de minha avó. Sempre experimentei suas receitas mas nunca, até poucas semanas atrás, havia sequer visto este famoso caderno.
            Ao lê-lo, fiz várias descobertas. Primeiro, percebi que os singelos e deliciosos pratos que fazem parte da minha história e da de minha família permaneceram, por algum motivo, em evidência, por décadas, em detrimento de outras tantas receitas que figuram no caderno. Por que o pavê de chocolate, a “fatia”, a Rosca-bolo, o Charlotte, os pastéis, o biscoito frito, o souflê de chuchu e até o lendário “Rex Tics” (sobremesa feita com gelatina e guaraná e assim batizada por mim e meu irmão na infância), se tornaram tão simbólicos da casa da vovó Dina; enquanto tantas outras receitas de seu caderno parecem nunca terem sido sequer feitas?
            Talvez pelo mesmo motivo que uma palavra vinda do latim permanece viva na língua francesa, por exemplo, mas em outro idioma, de mesma origem, como a língua portuguesa, se torna erudita, literária, ou em alguns casos até cai em desuso.  
            Na evolução das coisas, no tempo, certos hábitos, modas e descobertas perduram, outros não. O café, cultivado em regiões tropicais, e originalmente consumido no Oriente Médio, se tornou hábito vernacular em praticamente todos os países do mundo. O chocolate, já conhecido pelos astecas,  foi experimentado por Colombo em 1502, e então difundido pelos colonizadores espanhóis para  o mundo. Já a mandioca, o feijão, e tantos outros frutos de nossa variada safra tropical, não são conhecidos ou encontrados em países do hemisfério norte.
              Bem, não posso explicar o porquê de toda a história, mas posso dizer que, ao menos no caso do livro de receitas, esta foi uma história construída, pouco a pouco e literalmente, a muitas mãos.
            Havia uma propaganda de biscoitos que dizia, há anos atrás: “Vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?” Da mesma forma, pergunto: o pavê de chocolate se tornou predileto por ser a sobremesa preparada com mais freqüência para os almoços de domingo, ou era protagonista destes cardápios por ser o predileto? Não sei ao certo, o fato é que o que tornou estes pratos tão apreciados foi uma história de comunhão entre avós, filhos, netos, e amigos, ao longo de muitas décadas.
            Como esquecer do meu avô, já bem velhinho, preparando sua sobremesa de dias especiais, salada de frutas com sorvete, taça por taça, no maior capricho? Na verdade, foi ele quem sempre cozinhou na casa, pois minha avó era pianista, mais afeita às artes que à cozinha. Ele, autodidata em tudo, aprendeu sozinho de idiomas à construção de casas: era um fazedor.
            O caderno não tem data. Nem de início nem de fim.  Pelo vocabulário, percebo que foi inaugurado em meados dos anos 1950, na época em que o leite era entregue de porta em porta em garrafas de vidro e que, nas receitas, serviam também como medida. Há também outras curiosas medidas, como “um pires de açúcar” ou farinha.
            A caligrafia de minha avó, que era também professora, é linda, tão antiga quanto as páginas amareladas e respingadas de cozinha, esperando que alguém as descubra hoje e as torne vivas novamente.
            Os doces testificam uma culinária bem brasileira, de uma época em que ninguém se preocupava com os “assucares”, nem com o colesterol.
            As amizades e relacionamentos da minha avó estão também bem estampadas nas receitas. Reconheço nomes de suas amigas e parentes, e de lugares que ela conheceu. Fico imaginando o tempo em que as pessoas tinham tempo, se visitavam, preparavam o lanche em casa, e em meio a confidências, trocavam também receitas.
            Como boa mineira, vovó Dina tinha em seu caderno oito receitas diferentes de pão de queijo nomeadas, junto ao título, segundo o nome ou procedência do fornecedor, ou pela qualidade do produto. “Sinhá”, “ótimo”, e “Morro do Ferro”, são alguns dos sub-títulos que acompanham este capítulo tão mineiro. Para saber qual o melhor, só fazendo um concurso culinário, “cazeiro”, com ‘z’ mesmo, e resgatar o sabor do pão de queijo original, anterior à era do pão-de-queijo congelado.
            As andanças da autora para dentro e fora do Brasil também são perceptíveis nas entrelinhas do caderno. De Sete Lagoas a Portugal, da invenção do brigadeiro, inspirado no Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato à presidência em 1945, na primeira eleição após a ditadura Vargas, a pratos portugueses e ao ‘moderno’ pão integral, na década de 1970, tudo tem sua página de honra.
            Na verdade, o caderno de receitas não tem mistério nenhum. Mas os encontros, histórias, aromas e sabores que ele evoca, torna este velho livro de notas uma das mais importantes heranças de minha avó que, espero, meus filhos, tão entusiastas de experiências gastronômicas, saibam e possam, além de apreciar, deixar como legado às futuras gerações.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

MISTÉRIO

O caminho é longo.
A alma, infinita e vertical.
Como o azul do céu de brigadeiro que me cobre,
a cidade,
ruído e ruína,
borbulha.

Dentro e fora de mim
reina o mistério.
Calo,
silêncio profundo.
Respeito, reverência e humildade,
diante da vida.

Não quero leme,
nem dou norte.

Apenas contemplo estrelas.
Prossigo, coração elevado e reto,
entrego a bússola aos céus.

Quero ser carregada pelo mistério.
Como albatroz ultramar,
no caminho invisível do ar,
confio.