Outro dia fui levada ao país mais distante do mundo. Planejava ir à Patagônia, quase Finis Terre, e acabei num lugar ainda mais longínquo.
Curiosamente, não embarquei num avião, fiz horas de vôo, ouvi outro idioma ou senti o efeito do fuso horário. O impacto que senti foi bem maior. Pra chegar neste lugar, levei só dez minutos, na hora do rush.
Tudo começou com uma carona. Pedido de amiga, na porta da escola. O destino, território conhecido, de nome, fácil de chegar. No pé do morro, um monte de sacolas pra carregar.
-Como é que você vai subir à pé, com este peso todo? - foi minha pergunta.
- Me leva lá em cima.
-Tem perigo?
- Essa hora é tranqüilo, vamos embora. – falou a Rô com conhecimento de causa, e de “casa”, pois nasceu e viveu no morro 41 anos.
-Cê tem medo?- ela perguntou.
- Deus está conosco, o que vamos temer?
E lá fomos nós serpenteando de carro ladeira acima. No pé do morro, entrei noutra realidade. Os que a conhecem por dentro que me perdoem, nunca fui tão longe estando tão perto. “Au delá de la frontière”, cruzei a fronteira proibida. E entrei num mundo que só vemos em espelho, fragmentado, distorcido, ou através de pessoas oriundas de lá que se infiltram no nosso meio: o menino no sinal, o mendigo, a empregada doméstica, o bandido. Com todos aprendemos a conviver, acomodados em nosso incômodo; eles, pessoas necessárias, ou simplesmente integrantes dissonantes do nosso todo.
Bom, fato é que, lá pelas tantas, estava eu fazendo sacolão no alto do morro, acompanhando minha amiga. Fui conhecendo gente: o cunhado, a sobrinha de rolinhos na cabeça, a irmã, a amiga. Fraternidade verdadeira, sem teatro. Me senti acolhida; por outros vigiada, emoção sob tensão.
Ali reside toda a antropologia. Se há ainda algum estranhamento e aprendizado com a cultura do outro, tudo estava ali.
Longe da caridade instituída, mergulhei no universo alheio e olhei o estranho nos olhos. Amei profundamente aquela gente, com um amor tão real que me deixaria ali por horas. Vi o outro, despossuído de bens físicos, jogado no total abandono, entregue à maldade e à violência. No meio do cenário de guerra (porque não se iludam, há guerra), vi nobreza, solidariedade, simplicidade, amor. Tudo posto, mesclado, num só lugar. Era tempo de trégua. Protegida fui.
No caminho de volta, tanto queria saber sobre o mundo da Rô que o tempo era curto. Como criança, me enlacei naquele mundo instantaneamente.
A visão de moradora do asfalto caiu. Enquanto descia o morro, ficaram pra trás o medo, o isolamento, o preconceito. Achei nosso universo, de lazer e consumo em shoppings extremamente pobre.
Venci aquele labirinto como quem deixa atrás de si uma Grécia sem beleza.
Tudo lhes foi tirado. Mas não o amor. Este insiste em germinar no meio do caos. Meus valores foram revistos em 360 graus.
E voltaram pro mesmo lugar. Em uma hora percorri sem perceber uma jornada dentro de mim.
Que Japão, que Indonésia, que Patagônia que nada. O país mais distante do mundo está aqui mesmo.
No bairro vizinho. Ou dentro de nós.
Ana Pimentel Romano