terça-feira, 24 de agosto de 2010

O PAÍS MAIS DISTANTE DO MUNDO

                                                       
                   Outro dia fui levada ao país mais distante do mundo. Planejava ir à Patagônia, quase Finis Terre, e acabei num lugar ainda mais longínquo.
Curiosamente, não embarquei num avião, fiz horas de vôo, ouvi outro idioma ou senti o efeito do fuso horário. O impacto que senti foi bem maior. Pra chegar neste lugar, levei só dez minutos, na hora do rush.

             Tudo começou com uma carona. Pedido de amiga, na porta da escola. O destino, território conhecido, de nome, fácil de chegar. No pé do morro, um monte de sacolas pra carregar.
-Como é que você vai subir à pé, com este peso todo? - foi minha pergunta.
- Me leva lá em cima.
-Tem perigo?
- Essa hora é tranqüilo, vamos embora. – falou a Rô com conhecimento de causa, e de “casa”, pois nasceu e viveu no morro 41 anos.
-Cê tem medo?- ela perguntou.
- Deus está conosco, o que vamos temer?

                  E lá fomos nós serpenteando de carro ladeira acima. No pé do morro, entrei noutra realidade. Os que a conhecem por dentro que me perdoem, nunca fui tão longe estando tão perto. “Au delá de la frontière”, cruzei a fronteira proibida. E entrei num mundo que só vemos em espelho, fragmentado, distorcido, ou através de pessoas oriundas de lá que se infiltram no nosso meio: o menino no sinal, o mendigo, a empregada doméstica, o bandido. Com todos aprendemos a conviver, acomodados em nosso incômodo; eles, pessoas necessárias, ou simplesmente integrantes dissonantes do nosso todo.

                 Bom, fato é que, lá pelas tantas, estava eu fazendo sacolão no alto do morro, acompanhando minha amiga. Fui conhecendo gente: o cunhado, a sobrinha de rolinhos na cabeça, a irmã, a amiga. Fraternidade verdadeira, sem teatro. Me senti acolhida; por outros vigiada, emoção sob tensão.
Ali reside toda a antropologia. Se há ainda algum estranhamento e aprendizado com a cultura do outro, tudo estava ali.

                Longe da caridade instituída, mergulhei no universo alheio e olhei o estranho nos olhos. Amei profundamente aquela gente, com um amor tão real que me deixaria ali por horas. Vi o outro, despossuído de bens físicos, jogado no total abandono, entregue à maldade e à violência. No meio do cenário de guerra (porque não se iludam, há guerra), vi nobreza, solidariedade, simplicidade, amor. Tudo posto, mesclado, num só lugar. Era tempo de trégua. Protegida fui.

                  No caminho de volta, tanto queria saber sobre o mundo da Rô que o tempo era curto. Como criança, me enlacei naquele mundo instantaneamente.
A visão de moradora do asfalto caiu. Enquanto descia o morro, ficaram pra trás o medo, o isolamento, o preconceito. Achei nosso universo, de lazer e consumo em shoppings extremamente pobre.

                    Venci aquele labirinto como quem deixa atrás de si uma Grécia sem beleza.
Tudo lhes foi tirado. Mas não o amor. Este insiste em germinar no meio do caos. Meus valores foram revistos em 360 graus.
                    E voltaram pro mesmo lugar. Em uma hora percorri sem perceber uma jornada dentro de mim.
Que Japão, que Indonésia, que Patagônia que nada. O país mais distante do mundo está aqui mesmo. 
No bairro vizinho. Ou dentro de nós.

Ana Pimentel Romano

sábado, 14 de agosto de 2010

Sobre Lisboa com as gaivotas
















              Há um lugar sobre os telhados, ainda mais alto que a mais alta fortaleza. Dali se descortina o dia, e o céu  da manhã lança focos de luz dourada sobre a cidade que desperta. A voz de Lisboa canta a beleza profunda, silenciosa e triste deste país. Arco-íris diversos se alternam no horizonte da cidade, rememorando eterna aliança. Uma chuva ligeira passa.Gaivotas, como sentinelas do ar, conduzem meu olhar, e me ensinam a descobrir a cidade sobre os telhados. Para onde vão? De onde vêm? Que desenho fazem na corrente de ar? Meu voo é com o olhar. 
           Não conheço toda a história. Da arquitetura, pouco sei. Como folha em branco, inicio agora meu saber. Não preciso descer à cidade. Daqui, tudo o que importa, sei. E o Tejo, como não amá-lo? Ele mais parece um mar. Sobre a ponte, carrinhos como formigas vão e vêm. As balsas mansamente levam e trazem gente a trabalhar. O bonde amarelinho mais parece um poema. Há uma sinfonia silenciosa que a cidade toca. A cidade é ritmo, mansidão, cadência. Cada pessoa, avião, carro, trem, em seu movimento cotidiano, é uma nota desta composição.
               A luz desenha (ora esconde, ora revela), detalhes e o todo deste grande cenário.
          Do alto, o Criador comanda a natureza. Desenha, em amplas linhas, a grande cena humana. Lá embaixo, cada um escreve sua própria história. Para que haja Paz, há que se alinhar nosso coração ao Dele, ou o homem se perderá em seu próprio caminho.

               Há uma mansidão, uma simplicidade e um silêncio únicos. O sol tenta aquecer, mas é ainda inverno. Os telhados, de sol e de chuva, agora brilham. Tijolo sobre tijolo, tempo sobre tempo, vida sobrevida, a cidade foi assim constituída.
              Os sinos seguem marcando, de forma discreta e constante, o tempo que, aqui, não acelera. As casas da Alfama se conformaram lado a lado, como eternas irmãs. Seus sótãos e telhados, montados como um grande Lego, apontam, simultâneos e agudos, para as inúmeras faces dos pontos cardeais. Roupas brancas, como bandeiras, secam nos varais.

             As gaivotas seguem sua rota transparente e secreta. A vida, em seu sentido essencial, verdadeiro e mais profundo, reina.
           Onde há lágrimas não pode haver palavras. Apenas respiro Lisboa, e permaneço imersa, em profunda contemplação.

Lisboa, 19 de fevereiro de 2010