Eu me lembro bem da
minha cidade nos anos 70. Ela era, pra mim, enorme, mas bem conhecida, pois
sempre moramos na região central e transitávamos muito, de carro, ônibus, a pé.
Nossa escola, o
Einstein, era, literalmente, colada na nossa casa e, digamos, uma extensão
dela. Como meu pai, profissional da educação, contribuía voluntariamente nas
questões da escola, e éramos envolvidos com a comunidade (inclusive nos fins de
semana); não raro recebíamos a visita de professores, que se tornavam amigos, e
de inúmeros colegas: verdadeiras hordas de crianças em nosso apartamento, desde
os melhores amigos, até crianças estilo “esqueceram de mim”: os pais não
buscavam, a escola tinha que fechar, e pediam pra minha mãe se o menino podia
ir lá pra casa esperar “o resgate”.
Morávamos no terceiro,
e último, andar de um pequeno prédio. Pra ir pra escola, era só descer correndo
as escadas, muitas vezes escorregando pelo corrimão de mármore, quando o sino
da D. Isabel, guardiã da porta da escola, já tinha tocado, e tínhamos, eu e meu
irmão, literalmente que voar, pra pegar o portão aberto.
A União Israelita, ou “União”,
para os íntimos, era o clube que frequentávamos nos fins de semana. Clube e
escola funcionavam no mesmo lugar. A enorme piscina azul podia ser vista da
janela do meu quarto. Ali passamos inúmeros dias, soltos, nadando e brincando
por horas.
No “salãozão”, como
chamávamos o grande auditório com palco, coxia e tudo, é que vi, assombrada,
pela primeira vez, senhores já bem idosos, marcados na parte inferior do
antebraço com um enorme número, terrível memória dos campos de concentração.
Estes haviam escapado do terror, e lá estavam, tranquilos, jogando cartas
enquanto o tempo passava devagar.
Muitas histórias
aprendi nos dez anos de Einstein: ali fui alfabetizada, aprendi sobre a cultura
e história judaicas e, sobretudo, a amar o povo judeu como uma extensão de mim
mesma. A deliciosa comida, simbólica e milenar; as épicas histórias da Bíblia,
as festas típicas, o hebraico, os feriados, inúmeros, judaicos e cristãos, a
bandeira de Israel, e, finalmente, um jeito criativo, questionador, e quase
anárquico de ensinar, em plena ditadura; tudo isto ficou gravado em mim em profundas
camadas do meu coração para sempre.
Bem, mas saindo da escola
para a cidade. Nos fins de semana, com nosso pai de folga, e um permanente
espírito explorador, ampliávamos nosso círculo de abrangência.
O centro de Belo
Horizonte era uma delícia. Coisa boa era assistir às matinês no Cine Jacques,
Acaiaca ou Pathé. Ao lado do Cine
Jacques, o lanche no Ted’s fechava o passeio com chave de ouro. Na praça da
Liberdade já existia o Xodó, com a melhor batata chips do mundo, num formato
quadriculado que nunca mais vi. Meu pai gostava tanto das matinês que era
capaz de ir sozinho até para assistir Tom e Jerry ou Carlitos. Ele dava
gargalhadas tão altas que eu e meu irmão abaixávamos na cadeira morrendo de
vergonha.
Vez por outra
passeávamos no Mercado Central, e minha diversão predileta era observar o
colorido movimento das lojas e pessoas, através do recorte das grades instaladas
no chão do piso do estacionamento.
A Praça da Liberdade
era território de pais e crianças. Ali aprendi a andar de bicicleta e
brincávamos de sermos arrastados nas folhas das palmeiras que caiam na alameda
principal.
Quando as chuvas
começavam, a Avenida Afonso Pena ficava linda de noite, refletindo no asfalto
molhado as luzes coloridas de Natal. Cada ano era uma decoração. Hoje pensando,
acho que a decoração era meio “brega”, mas eu achava linda. Subir e descer a
avenida de carro era nosso “caminho da roça.”
Outra coisa que eu
fazia muito era ver a cidade deitada no carro. Os trajetos mais conhecidos,
como da nossa casa à casa da vovó, na ida e na volta, eu podia adivinhar,
apenas olhando o alto dos prédios e o céu. Eram trajetos aéreos da cidade, que
até hoje guardo na memória.
No início do ano
letivo, todo ano, minha mãe me levava pra fazer um sapato ortopédico. O
sapateiro colocava meus pés em cima de um papel de mercearia, e fazia seu
contorno com uma caneta, o que fazia muita cosquinha. Este procedimento durou
anos. Meu pé continuou chato, mas eu me diverti muito com aquilo e fiquei com
uma memória bucólica do assunto.
Outra sapataria que
frequentávamos era “A Balalaika”, na Avenida Afonso Pena, no centro. Acho que
ninguém, exceto eu e minha mãe, deve se lembrar disso. O atendente era o filho
do dono, que nos tratava sempre com o máximo de decoro e educação.
Roupa, fazíamos em
costureiras. Como tenho saudade disso. Elas passavam o dia em nossa casa,
fazendo várias peças para a família. Quando fui crescendo, passei a escolher os
tecidos e desenhar os modelos , em cada detalhe, o que era um exercício de arte
e uma grande diversão. Uma de nossas costureiras mais frequentes, Balbina,
costumava fazer roupas maiores que a medida, e quando a gente reclamava, ela
simplesmente dizia: “É só você por um brochinho aí, que fica ótimo.” Que cara
de madeira!
Belo Horizonte cresceu.
Hoje, vista do alto, nem a reconheço. Moro fora da cidade. Circulo numa pequena
parte da cidade, não sei muito do resto. Vejo pessoas com caras fechadas e, em
alguns pontos, várias “tribos urbanas”.
O espaço público não pertence mais a seus habitantes. Todo mundo anda de carro, vidro
fechado, a violência aumentando. É difícil hoje soltar uma filha adolescente para
andar sozinha, como eu fiz, toda vida.
A memória que meus
filhos terão da cidade será totalmente diferente da minha.
Diferente da do meu pai;
que se mudou pra cá nos anos 1950, vindo do interior para estudar, e “vencer na
vida”.
Mais diferente ainda da
memória do meu avô Pimentel, que veio para a capital em 1933, começou a dirigir
aos 13 anos, quando haviam, pasmem, apenas 7 carros em toda a cidade, apenas um
guarda de trânsito e um posto de gasolina, este, pensavam, fadado a falir por
falta de clientes.
Ou minha avó Dina, que
se formou no mesmo ano no Conservatório, em piano e canto, e fundou a primeira
orquestra de mulheres de Belo Horizonte.
Sim, a cidade mudou.
Temos mais recursos, mas muito mais limitações. O simples deslocamento de um
lugar a outro se tornou um caos. É o que chamam de desenvolvimento.
Tenho vergonha de dizer
a meus filhos que eles não podem andar a pé pela cidade. O espaço público não é
seguro. Quem sabe um dia. Quem sabe noutro lugar. Nossa relação com a cidade
não é mais de intimidade. Pulamos de um a outro lugar seguro. Alguns,
verdadeiros “condomínios de seguranças máxima”. Eu prefiro andar a pé. Observar
o tempo, as pessoas. Respirar o lugar. Ainda não perdi a esperança.
Ana, o texto ficou maravilhoso. Faz lembrar também a minha infância. Continue assim. Um abraço. André Coelho.
ResponderExcluirAna,
ResponderExcluirdeu tantas saudades!
Fiquei emocionada com "nossa" história.
Parabéns pela beleza, sensibilidade e simplicidade do texto. Bjs.Varda.
Flor, que privilégio ter uma memória dessas! Apesar de não ter conhecido essa "beagá", viajei no tempo com voce! bjokas Marina
ResponderExcluirAna,
ResponderExcluirEsta foi a BH de meus filhos e já era bem mais evoluida que a minha.
No entanto, curti as duas e tenho saudades sim.
Era bom demais sair e encontrar conhecidos.
Impressionante/ hoje isso é impossivel o que deixa a gente com mais sensação de ETs.
Vou prá Ju hoje.
Bjos Carmen
Ana, não sabia que, além de cineasta e poetisa, você também era cronista. O texto está muito bom! E veja só, eu também comprava meus sapatos escolares na Balalaika.
ResponderExcluirBeijos,
Simone.